Sunday, June 22, 2008

Um Continente à Deriva

Lisboa – A efeméride da constituição em Addis Abeba da Organização da Unidade Africana (OUA), 25 de Maio, é assinalada como o Dia de África. Corrupção crónica, ditaduras, massacres, xenofobia, racismo, são os ingredientes que acompanham esta celebração reforçando os clichés sobre um continente à deriva na sua dignidade onde a unidade e esperança são ainda uma miragem.

«Porque é que África está a morrer? Na maior parte dos casos, porque está a se suicidar», escreveu Stephen Smith provocando uma avalanche de criticas acusando-o de racista e colaborar com os decrépitos espíritos colonialistas.

Qualquer elogio à África misteriosa, bela, sedutora, enigmática e rica é tolerado mas também ignorado devido à multiplicidade de adjectivos semelhantes sempre colados ao continente Negro. Mas criticar África é um tabu com efeitos devastadores assegurados contra o seu autor. Um exemplo recente deste fenómeno foi o tipo de ataques contra Bob Geldof após ter denunciado uma realidade da elite angolana

Na realidade África tem tudo para ser o continente exemplar do planeta. Riquíssimos recursos naturais, intelectuais iluminados, um exemplar património histórico-cultural, uma variedade geográfica ímpar. Mas mergulha no caos. Os excessos do colonialismo branco passado são reproduzidos hoje na sociedade africana como se fosse o fado natural do povo prescrito pelos seus libertadores. As máximas ditadas durante as lutas pelas independências em África são hoje ridicularizadas e pelos próprios dirigentes africanos. Sobrevoando África é impossível ficar alheio às particularidades da maioria dos regimes políticos africanos. No Norte de África apenas a Argélia sobrevive num regime de características democráticas. A sul do Sahel é necessário procurar meticulosamente os Estados que usufruem de uma verdadeira democracia. Na maior parte dos casos são ditaduras dissimuladas em democracias onde as eleições são meros instrumentos de legalização de uma eterna nomenclatura no poder, daí que cada sufrágio resulta numa vaga de violência e contestação, fortemente reprimida e silenciada com a bênção de outros regimes gémeos.

O significado dos valores dos Direitos Humanos também se transforma em África em humanos com alguns valores mas sem direitos. A distribuição justa das riquezas é uma absoluta miragem, e a crise é vendida à população como o resultado de feitos nefastos sempre externos e nunca como reconhecimento da incapacidade interna de governar. O racismo, vigorosamente condenado no passado tornando-se no estandarte para a libertação, reaparece sucessivamente no continente com actos de extrema e insuportável violência despertando continuamente o regresso aos genocídios raciais e tribalistas.

Hoje quatro grupos se destacam em África. Os Governantes, absolutamente alheios às realidades dos seus países, concentram todas as energias na manutenção das suas fortunas e poder, alimentam junto do povo uma sacra e idílica imagem típica das ditaduras mais ferozes, o Estado é uma propriedade privada, defendem os sucessos do desenvolvimento nacional mas enviam os filhos a estudar no estrangeiro e frequentam apenas os hospitais na Europa e América. Um segundo grupo, composto por uma reduzida classe média, instrumentos do poder, suporta as ilusões da classe dirigente e fomenta a imagem dos grandes lideres alimentando dogmas e fantasmas passados, imaginando supostos complots externos, como veículo de viciar uma população num só regime paternalista e omnipresente. A maioria da população constitui o terceiro grupo, sobrevive e tenta viver, é a primeira vítima dos excessos do primeiro grupo contra o qual não pode se opor abdicando da dignidade e dos valores aclamados nas proclamações das independências. Por fim, o quarto grupo, que não acredita na palavra futuro ou esperança, aposta no salto para a emigração, frequentemente para a ex potência colonizadora, como a ultima arma de sobrevivência pessoal e familiar, uma ilusão que na maior parte dos casos resulta num fracasso e na humilhação.

O Dia de África deveria ser a ocasião do continente se debruçar sobre ele mesmo e em vez de ovacionar migalhas de sucesso reservado a uns, reflectir que o fiasco da OUA, criada a 25 de Maio de 1963, que em 2002 morreu e ressuscitou na União Africana, foi o primeiro sinal que as instituições africanas e os seus governantes também falharam e não cumpriram as promessas que dignificaram as lutas de independência.

Enquanto a maior parte dos dirigentes africanos asfixiam e destroem o continente, a população dá um novo folgo e salva África, impõem-se através da música e da dança que atinge hoje os maiores índices de popularidade mundial tornando-se numa referência artística, difundem a arte que fora considerada injustamente como «arte primitiva» é hoje defendida e patente em lugar de honra nos mais prestigiosas galerias e museus, destacam-se em todas as modalidades desportivas, fazem da gastronomia um embaixador de sabores únicos, e impõem-se na literatura como veiculo de contar a singularidade e a pluralidade africana.

Ninguém pode prever o futuro próximo do continente africano, terra onde numa fracção de segundo uma faísca se transforma num devastador meteorito. A longo prazo África vai certamente se descobrir, abandonar os argumentos e os bodes expiatórios da fatalidade, uma nova geração emergente já está a arregaçar as mangas para provar que ser independente é não depender das ilusões de uma velha nomenclatura no poder assente numa efémera auto sacralização.

Rui Neumann

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