Não regressei a casa... sempre estive aqui!

Foto cedida pelo Jotta

A manhã despertou com cheiro a terra molhada,
casuarinas espreguiçando-se,
mar e ondas bailando,
chuva abençoando campos em gestação,
sol e nuvens num movimento mutante,
tatuando rostos,
espelhando palmeiras,
semeando trinares de guitarras
que já não choram...
Na ponta dos meus dedos,
o ritmo dos batuques saudando
a chegada de um novo dia
na natureza e dentro de mim...
No meu olhar existe apenas
céu, areia e o azul do oceano
que diminuiu, que apagou a distância...
Cheguei a África, regressei a casa...
reencontrei meu coração,
despertaram meus sentidos.
Minha alma acaricia recordações
perdidas no esquecimento.
A pele arrepia-se, a boca emudeceu
e a magia executa os seus acordes
num rosário de memórias interminável.
O silêncio tem som,
a noite vestiu-se de luar,
enfeitiçou as estrelas,
trespassou constelações inteiras
e baila suavemente despida de trevas...
Tudo está perfeitamente delineado,
são os contornos exactos
da vida que parou na ausência,
no sonho pincelado de pesadelos,
na espera consentida,
no regresso que tardou..
Tão complexo de entender,
simples de traduzir
em lágrimas e dor,
em queixumes e agonia,
numa saudade sem fim...
Naufraguei em tempestades,
andei à deriva por ondas e ventos
e acordei naquele rectângulo de terra
distante e rochoso,
que floresceu num dia de Agosto...
Vivi e consegui sobreviver...
Tornei-me mulher e fui feliz...
As amarras nunca se soltaram do cais.
A viagem de ida, essa que foi de dor, inesperada e triste,
não aconteceu... nunca parti...
Não regressei a casa... sempre estive aqui...

Luanda, 2003.12.30